Hipnose é aceita como terapia; o que estraga sua fama é o entretenimento

Do Egito antigo à psicanálise de Freud, a hipnose é uma prática médica cercada de controvérsias. A última foi no Big Brother Brasil, com o participante Pyong Lee aplicando a técnica em "sisters". Reconhecida no Brasil pelos conselhos federais de Medicina, Psicologia, Odontologia e Fisioterapia, ela foi incluída entre novas Práticas Integrativas e Complementares (PICS) do SUS em 2018, e atualmente é usada principalmente no tratamento de depressão, na mudança de comportamentos, entre outros benefícios. O próprio Hospital das Clínicas, em São Paulo, usa a hipnose no controle da dor. Mas ela ainda causa desconfiança em muita gente — e boa parte da culpa é da ficção.
Longe da imagem criada por Mandrake (história em quadrinhos da década de 1930) e filmes como "Corra!" (2017), a hipnose é uma técnica que deve ser aplicada por profissionais com formação na área e exige participação ativa do hipnotizado — não, você não precisa ter medo que alguém e seu inconsciente involuntariamente.
"A hipnose exige capacidade de concentração do indivíduo para entrar em um estado em que você se desliga do contexto e coloca sua mente para focar naquilo que você quer ou no que está sendo sugerido", define Célia Martins Cortez, que é neurocientista, professora titular da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ) e hipnoterapeuta. Ela ressalta que o processo depende tanto — se não mais — do indivíduo que está sendo hipnotizado do que de quem está hipnotizando. Algumas pessoas são mais facilmente hipnotizáveis, e não se sabe ao certo o porquê, mas o entendimento da técnica e a confiança no profissional ajudam.
Na madrugada de terça (3), o youtuber Pyong Lee (que é formado em Direito e especializado em hipnologia) decidiu mostrar aos brothers como funciona a hipnose. Enquanto um grupo se dispôs a experimentar o estado, outros mais desconfiados criticaram a atitude. Ivy foi uma das que mais se mostrou suscetível e aberta ao experimento, e foi com ela que Pyong levou a prática mais longe.
"Nessas apresentações, um bom hipnoterapeuta normalmente observa na plateia quem é altamente suscetível. Geralmente quem se voluntaria a ir ao palco está mais aberto à experiência, e, portanto, vai se deixar hipnotizar facilmente", explica Cortez. "A pessoa quer tanto aquilo que entra naquela situação virtual. Hipnose pode se tornar algo grave. Não tem como saber o que vai ficar dessa situação", afirma.
A especialista ressalta que mexer com a mente não deve ser levado com leviandade, mesmo em brincadeiras. Quando se fala em hipnoterapia (a hipnose aplicada como tratamento médico, com o objetivo de mudar comportamentos ou analisar questões mentais), apenas psicólogos, psiquiatras e alguns médicos especializados deveriam poder aplicar a técnica, defende Cortez. É preciso avaliar o paciente para entender se não há riscos como surtos psicóticos e esquizofrenia, entre outros.
O uso da técnica para relaxamento e concentração durante procedimentos médicos, odontológicos e fisioterapia, por exemplo, é menos "invasivo", porque não causa mudança de comportamento. É o que Cortez chama de hipnose de procedimento.
Erick Heslan, presidente da Sociedade Brasileira de Hipnose (SBH), explica que o principal objetivo da SBH, fundada em 2015, é reforçar o padrão ético na aplicação da hipnose. "Mesmo sem formação, hoje você pode ser um hipnoterapeuta, e nós percebemos que isso era um risco muito grande, porque nem sempre essas pessoas têm a formação que recebemos nas faculdades de psicologia, medicina e outras", diz Heslan. Pensando nisso, a SBH desenvolveu um código de ética e conduta para os profissionais.
A preocupação vem precisamente do fato de que a hipnose funciona, sim. Apesar de os estudos na área ainda não conseguirem explicar com exatidão o que ocorre no cérebro no estado de concentração total, testes empíricos com pacientes demonstram a eficácia da prática.
A volta do transe
Pyong Lee é um dos grandes responsáveis pela popularização da hipnose nos últimos anos, reconhece Heslan. Para ele, o uso da técnica para entretenimento precisa ser responsável, mas não é condenado pela SBH. "O Pyong foi uma consequência do cenário que começamos a formar em 2012 entre pesquisadores na área, mas ele também foi um potencializador. A gente viu o número de pesquisas em relação ao tema duplicar, triplicar em poucos meses", relata. Pyong tem mais de 7 milhões de inscritos em seu canal no YouTube e já hipnotizou diversos famosos como Eliana, Fátima Bernardes e Celso Portiolli.
A hipnose viu ciclos de crescimento e diminuição da popularidade desde que surgiu, no antigo Egito, como tratamento nos chamados "templos do sono", como relata Cortez no artigo "A prática da hipnose e a ética médica". "A primeira iniciativa de análise crítica do estado hipnótico surgiu na Idade Média. Paracelso (1493-1541), que usava um ímã para a indução hipnótica em seus pacientes, criou o termo 'magnetismo animal' para explicar o 'fluido desconhecido mediante o qual o homem poderia exercer influência sobre outros e sobre objetos'", diz o artigo. A ideia foi superada quando, ainda entre os séculos 18 e 19, Franz Mesmer mostrou que, no processo hipnótico, o mais importante era a influência do hipnotista sobre o paciente.
No fim do século 19 houve um declínio na hipnose terapêutica. Isso é atribuído a um grupo liderado pelo neurologista francês Jean-Martin Charcot, que considerava o estado hipnótico idêntico a um surto histérico. Pierre Janet, colaborador de Charcot, é visto como "culpado" por fazer afirmações falsas que levaram à ideia de "dominação hipnótica" explorada na ficção.
Mesmo a visão de Sigmund Freud, discípulo de Charcot, é hoje considerada superada. Foi Milton Erickson (1901-1980) quem, com seus estudos, ressuscitou a hipnose como terapia, tendo criado várias técnicas hipnoterapêuticas que são aplicadas até hoje.
Atualmente, a maioria das pesquisas na área se concentra em comprovar que a técnica funciona em diferentes casos. Heslan relata que a SBH vem trabalhando para fomentar o tema nas faculdades, desde monografias até iniciação científica, para trazer mais confiança ao público. Ele defende mais pesquisas, principalmente na área da psicologia.
Se por um lado a popularização ajuda a aumentar o interesse da academia pelo tema, por outro, abre espaço para charlatanismo, seja na TV, internet ou mesmo na rua (há "artistas de rua" que usam a técnica). "Tem gente brincando com hipnose, faz um curso de uma semana, dois meses", lamenta Cortez. A dica, segundo ela, é procurar um profissional com formação. "Tem que olhar o diploma na parede. Hipnoterapia tem que ser reservada a psiquiatras, psicólogos e médicos com formação na área. A mente não é brincadeira."
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