Alcides Lunardi, 80, tinha seis anos quando virou pioneiro involuntário da cidade que agora vê do alto do morro em que vive. O pai gostava de caçar e queria morar no meio do mato. "A gente se mudou pra cá no lombo do cavalo por picadas no meio das árvores. Não ava nem carroça. Depois da minha família é que chegaram as outras", conta. "Tinha tanta cerração por aqui que o sol só saía lá pra uma da tarde."
A memória fica mais turva quando ele tenta lembrar de abril, mês que ou hospitalizado. Perdeu 18 quilos e ficou 14 dias intubado. Sua mulher Gecilda, 76, também adoeceu. "Só não morri porque não era minha hora, mas fiquei com o pé na cova. Minha senhora não teve a mesma sorte", fala. O olhar logo fica vazio e desvia para a paisagem de dez ruas.
Sua companheira durante 58 anos foi uma das 14 pessoas que morreram de covid-19 em Marema, cidade de Santa Catarina de apenas 1.750 habitantes. O município lidera o ranking nacional de mortalidade proporcional à população, tabulados pelo pesquisador Wesley Cota, da Universidade Federal de Viçosa (MG), a partir de dados de todas as secretarias estaduais da Saúde. No Brasil, a mortalidade está em 234 a cada 100 mil habitantes. Em Marema, a proporção é de 800 mortos a cada 100 mil.
Numa época de tanta desinformação e cortina de fumaça, essa lista revela o drama concentrado nas pequenas comunidades, dando rosto à estatística de mais de 500 mil brasileiros mortos na pandemia. "Aqui todos se conhecem, e as mortes abalaram muito. Não tem ninguém que não perdeu um parente ou um amigo", resume Marli Lunardi, ao lado do pai e sem a mãe.